Open Science (Ciência Aberta)

Vou te contar (escrita criativa)

Facebook
X
WhatsApp

Marina, senta aqui, vou te contar uma história.
Eu sempre disse que você não tinha pai. Na certidão de nascimento está só meu nome, eu sei.

Eu te criei sozinha, e você sentiu o peso da responsabilidade de sermos só nós duas no mundo, e o mundo pesa, pesa toneladas.

Em uma corda-bamba entre penhascos, sob um monociclo, vivemos uma vida toda equilibrando o peso do mundo.

Sabe aquela história de que precisa de uma comunidade para criar um ser humano? Pura mentira.

O mundo odeia mulheres. Mulheres pretas e grávidas, então. Odeia mais ainda.

Não servem para o trabalho, não servem para cuidar de ninguém, e ainda vão ter uma criança preta para criar… uma criança que mama, e que chora, aí só vem desprezo de tudo quanto é lado.

Eu morava em casa de família, morei desde sempre, uma família que me buscou em Barreiras e me levou para São Paulo quando eu ainda era criança.

Não estudei, apenas limpava a casa, cuidava das crianças, e adormecia num quartinho sem janela que ficava logo depois da cozinha, junto com a despensa.

Só que um dia a patroa mandou eu ir ao mercadinho do bairro, à noite, comprar sonho.

Engraçado isso de comprar sonho, né Marina? Comprei o sonho dela, e fiquei pensando se sobraria algum pedaço para mim, se algum pedaço de sonho nesse mundo cabia naquele quartinho-sem-janela.

Só que naquela noite conheci seu pai, e senti uma quentura que vinha debaixo da saia. Ele me olhou e eu me derreti inteira.

Era o vendedor do sonho, e me vendeu várias histórias, e passamos a nos encontrar quando todos da casa estavam dormindo, e o mercadinho já havia fechado.

E eu, que não sabia nada do mundo, vi minha barriga crescer, até que a patroa me colocou para rua quando você estava prestes a nascer.

E o vendedor do sonho foi embora, o dono do mercadinho disse que ele saiu e nem pediu as contas.

Ficamos eu e você, Marina. E a vida não foi gentil conosco, nesse mundo que odeia as mães e nos coloca na corda-bamba-em-um-monociclo.

Por sinal, o nome do seu pai era Josemar, por isso seu nome é Marina, e ele me prometeu levar para conhecer o mar, e cá estamos nós, na praia, como se fosse um sonho.

Ana Luisa Zago

Sobre Mim

Ana Luisa Zago de Moraes atualmente pesquisa proteção de defensores de direitos humanos ameaçados e regulação das plataformas digitais.

Posts Relacionados