Marina, senta aqui, vou te contar uma história.
Eu sempre disse que você não tinha pai. Na certidão de nascimento está só meu nome, eu sei.
Eu te criei sozinha, e você sentiu o peso da responsabilidade de sermos só nós duas no mundo, e o mundo pesa, pesa toneladas.
Em uma corda-bamba entre penhascos, sob um monociclo, vivemos uma vida toda equilibrando o peso do mundo.
Sabe aquela história de que precisa de uma comunidade para criar um ser humano? Pura mentira.
O mundo odeia mulheres. Mulheres pretas e grávidas, então. Odeia mais ainda.
Não servem para o trabalho, não servem para cuidar de ninguém, e ainda vão ter uma criança preta para criar… uma criança que mama, e que chora, aí só vem desprezo de tudo quanto é lado.
Eu morava em casa de família, morei desde sempre, uma família que me buscou em Barreiras e me levou para São Paulo quando eu ainda era criança.
Não estudei, apenas limpava a casa, cuidava das crianças, e adormecia num quartinho sem janela que ficava logo depois da cozinha, junto com a despensa.
Só que um dia a patroa mandou eu ir ao mercadinho do bairro, à noite, comprar sonho.
Engraçado isso de comprar sonho, né Marina? Comprei o sonho dela, e fiquei pensando se sobraria algum pedaço para mim, se algum pedaço de sonho nesse mundo cabia naquele quartinho-sem-janela.
Só que naquela noite conheci seu pai, e senti uma quentura que vinha debaixo da saia. Ele me olhou e eu me derreti inteira.
Era o vendedor do sonho, e me vendeu várias histórias, e passamos a nos encontrar quando todos da casa estavam dormindo, e o mercadinho já havia fechado.
E eu, que não sabia nada do mundo, vi minha barriga crescer, até que a patroa me colocou para rua quando você estava prestes a nascer.
E o vendedor do sonho foi embora, o dono do mercadinho disse que ele saiu e nem pediu as contas.
Ficamos eu e você, Marina. E a vida não foi gentil conosco, nesse mundo que odeia as mães e nos coloca na corda-bamba-em-um-monociclo.
Por sinal, o nome do seu pai era Josemar, por isso seu nome é Marina, e ele me prometeu levar para conhecer o mar, e cá estamos nós, na praia, como se fosse um sonho.
Ana Luisa Zago